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Cálculo Diferencial e Integral II

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Diferenciabilidade

Funções de classe $C^1$

Embora a existência de derivadas parciais num ponto não garanta diferenciabilidade, a existência de derivadas parciais contínuas num aberto, que se costuma abreviar dizendo que a função é de classe \(C^1\) nesse aberto, já é um garante de diferenciabilidade. Isto dá-nos a possibilidade de justificar a diferenciabilidade só à custa de cálculo de derivadas parciais e da justificação da respectiva continuidade. Note que esta é uma condição suficiente mas não necessária para diferenciabilidade (tal já acontecia para funções reais de variável real).

Definição (Funções de classe $C^1$). Dizemos que \(F:A\subset\mathbb{R}^n\to \mathbb{R}^m\), com \(A\) um aberto, é de classe \(C^1\) nesse aberto, abreviadamente \(F\in C^1(A)\), se todas as derivadas parciais de \(F\) existirem e forem contínuas nesse aberto.

No caso de conjuntos que não são abertos diremos que uma função é de classe $C^1$ nesse conjunto se existir uma extensão da função a um aberto contendo o conjunto aonde a extensão é de classe $C^1$.

Vamos verificar que classe \(C^1\) num aberto implica diferenciabilidade. O essencial da questão deverá ser aparente considerando \(n=2\) e \(m=1\).

Supomos então \(f:A\subset\mathbb{R}^2\to \mathbb{R}\), com \(A\) um aberto, \((x_0,y_0)\in A\) e \((h,k)\in\mathbb{R}^2\) tal que o rectângulo de vértices \((x_0,y_0)\), \((x_0+h,y_0)\), \((x_0,y_0+k)\) e \((x_0+h,y_0+k)\) está contido em \(A\), algo que é possível por termos suposto \(A\) aberto, e que as derivadas parciais de \(f\) existem e são contínuas em \(A\). Mostrar que \(f\) é diferenciável em \((x_0,y_0)\) corresponde a mostrar que \[\lim_{(h,k)\to (0,0)}\frac{f(x_0+h,y_0+k)- f(x_0,y_0)-h\frac{\partial f}{\partial x}(x_0,y_0)-k\frac{\partial f}{\partial y}(x_0,y_0)}{\sqrt{h^2+k^2}}=0.\] A estratégia da demonstração é simplesmente usar o teorema de Lagrange (para funções reais de variável real, aplicado a uma função auxiliar conveniente) para escrever a diferença \(f(x_0+h,y_0+k)- f(x_0,y_0)\) como um produto interno de \((h,k)\) com um vector cujas coordenadas são respectivamente \(\frac{\partial f}{\partial x}\) e \(\frac{\partial f}{\partial y}\) calculadas em pontos pontos convenientes que, ao passar ao limite, garantem que este é de facto \(0\). Com efeito \[ f(x_0+h,y_0+k)- f(x_0,y_0)= [f(x_0+h,y_0+k)- f(x_0+h,y_0)]+[f(x_0+h,y_0) - f(x_0,y_0)]\] e aplicando o teorema de Lagrange às funções \(g_1(t)=f(x_0+h,y_0+t)\) e \(g_2(t)=f(x_0+t,y_0)\) obtém-se \[\begin{align}f(x_0+h,y_0+k)- f(x_0+h,y_0) & =k \frac{\partial f}{\partial y}(x_0+h,y_0+\theta_1 k) \\ f(x_0+h,y_0) - f(x_0,y_0) &= h \frac{\partial f}{\partial x}(x_0+\theta_2 h,y_0)\end{align}\] para alguns \(\theta_1, \theta_2\in\left]0,1\right[\) dependentes de \(h\) e \(k\).

Assim \[\begin{split}f(x_0+h,y_0+k) &- f(x_0,y_0) -h\frac{\partial f}{\partial x}(x_0,y_0)-k\frac{\partial f}{\partial y}(x_0,y_0) \\ & = (h,k)\cdot \left(\frac{\partial f}{\partial x}(x_0+\theta_2 h,y_0)- \frac{\partial f}{\partial x}(x_0,y_0), \frac{\partial f}{\partial y}(x_0+h,y_0+\theta_1 k) - \frac{\partial f}{\partial y}(x_0,y_0)\right)\end{split}\] permitindo a estimativa \[\begin{split} & \frac{\left|f(x_0+  h,y_0+k) - f(x_0,y_0) -h\frac{\partial f}{\partial x}(x_0,y_0)-k\frac{\partial f}{\partial y}(x_0,y_0)\right|}{\sqrt{h^2+k^2}} \\  & \leq \left\|\left(\frac{\partial f}{\partial x}(x_0+\theta_2 h,y_0)- \frac{\partial f}{\partial x}(x_0,y_0), \frac{\partial f}{\partial y}(x_0+h,y_0+\theta_1 k) - \frac{\partial f}{\partial y}(x_0,y_0)\right)\right\| \end{split}\] o que, graças à continuidade das derivadas parciais, garante que o limite é de facto \(0\).

Notamos que os cálculos anteriores seriam facilmente estendí­veis ao caso \(n>2\). Além disso, trabalhando coordenada a coordenada, podemos considerar também que \(m>1\).

Provou-se assim

Proposição (Classe $C^1$ implica diferenciabilidade). Se uma função \(F:A\subset\mathbb{R}^n\to \mathbb{R}^m\), com \(A\) um aberto, é de classe \(C^1(A)\), então é diferenciável.

Exercício. Mostre que a hipótese da proposição pode tornar-se mais fraca supondo que \(n-1\) derivadas parciais existem e são contínuas numa vizinhança dum ponto e a \(n\)-ésima existe no ponto. Nos cálculos anteriores isto corresponderia a não usar o teorema de Lagrange para a segunda diferença que estimámos mas sim a definição de derivada parcial.

Exemplo. Considere a função $f:\mathbb{R}^2\to \mathbb{R}$ definida por \[f(x,y)=\begin{cases}\frac{x^2y}{\sqrt{x^2+y^2}}, & \text{ se } (x,y)\neq (0,0) \\ 0, & \text{ se } (x,y)= (0,0).\end{cases}\]

Poderia justificar-se a diferenciabilidade no complementar da origem com base no teorema de derivação da função composta e suas consequências ou então calcular \[\begin{align*}\frac{\partial f}{\partial x} = & \frac{x^3y+2xy^3}{(x^2+y^2)^{3/2}}\\ \frac{\partial f}{\partial y} = & \frac{x^4}{(x^2+y^2)^{3/2}} \end{align*}\] que são funções contínuas no complementar da origem e, portanto, aí $f$ é diferenciável.

Quanto à diferenciabilidade em $(0,0)$ use a definição de diferenciabilidade ou verifique que as derivadas parciais na origem são ambas $0$ e tal corresponde ao limite das derivadas parciais calculadas no complementar da origem. Fim do exemplo.

Exercício. Dê um exemplo de uma função diferenciável num aberto mas não $C^1$ nesse aberto.

Diferenciabilidade de integrais paramétricos e regra de Leibniz

A hipótese de uma função ser de classe $C^1$ dá-nos um critério para estabelecer se e como podemos diferenciar um tipo muito simples de integrais paramétricos.

Proposição (Regra de Leibniz). Sejam $a\lt b$, $c\lt d$ e $f:[a,b]\times\,]c,d[\, \subset\mathbb{R}^2\to \mathbb{R}$ uma função de classe $C^1([a,b]\,\times\,]c,d[)$. Considere-se $g: \,]c,d[\,\to \mathbb{R}$ definida via \[g(x)=\int_a^b f(t,x)\, dt.\] Então $g\in C^1(]c,d[)$ com \[g'(x)=\int_a^b \frac{\partial f}{\partial x}(t,x)\, dt.\]

Demonstração. Da continuidade do integral paramétrico sabemos que a função ${]c,d[} \ni x\mapsto \int_a^b \frac{\partial f}{\partial x}(t,x)\, dt$ está bem definida e é uma função contínua. Então, sendo $x_0, x\in{]c,d[}$, temos, usando o teorema de Fubini, \[\int_{x_0}^x \left(\int_a^b \frac{\partial f}{\partial s}(t,s)\, dt \right)ds = \int_a^b \left(\int_{x_0}^x \frac{\partial f}{\partial s}(t,s)\, ds \right)dt = \int_a^b f(t,x)-f(t,x_0)\, dt.\] Usando então o teorema fundamental do cálculo para diferenciar o lado esquerdo da cadeia de igualdades anterior, obtém-se \[\int_a^b \frac{\partial f}{\partial x}(t,x)\, dt = \frac{d}{dx} \int_a^b f(t,x) \, dt\] que era o que pretendíamos. Fim da demonstração.

Exercício. Justifique que a função definida por \[\mathbb{R}\ni x \mapsto \int_0^{x^2}e^{t^2 x+t}\, dt\] é diferenciável em $\mathbb{R}$ e obtenha uma expressão para a sua derivada.

Sugestão: relembre o teorema fundamental do cálculo e a regra de Leibniz para justificar que as derivadas parciais da função \[(u,x)\mapsto \int_0^u e^{t^2 x+t}\, dt \in \mathbb{R}\] são contínuas em $\mathbb{R}^2$ (use as ideias de um exercício anterior), conclua que esta última função é diferenciável em $\mathbb{R}^2$ e use o teorema de derivação da função composta.


Última edição desta versão: João Palhoto Matos, 03/09/2021 12:09:28.