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Cálculo Diferencial e Integral II

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Continuidade global

Teorema de Heine-Cantor e integrabilidade

Do que estudámos até ao momento sobre integração deve ter ficado claro que a possibilidade de uma função limitada ser integrável num intervalo limitado e fechado de \(\mathbb{R}^n\) deve estar relacionada com o conjunto de pontos do domínio da função perto dos quais não podemos "controlar" a sua oscilação ser de alguma forma pequeno. Uma formulação precisa deste último conceito corresponde a definir medida (\(n\)-dimensional) nula. O facto de outros pontos do domínio não causarem problemas do ponto de vista de integrabilidade vai estar relacionado com o conceito de continuidade uniforme e com a garantia de que, em limitados e fechados, as funções contínuas serem uniformemente contínuas. Esta última afirmação constitui o teorema de Heine-Cantor.


Primeiro estendemos um conceito que já mencionámos, a oscilação de uma função num conjunto.

Definição (Oscilação de uma função num conjunto). Dada uma função \(f:A\subset\mathbb{R}^n\to \mathbb{R}^m\) e \(B\subset\mathbb{R}^n\) tal que \(A\cap B\neq \emptyset\), define-se a oscilação de \(f\) em \(B\), \(\operatorname{osc}_{B}f\), como sendo o supremo de \(\|f(\boldsymbol{x})-f(\boldsymbol{y})\|\) para todos os \(\boldsymbol{x}, \boldsymbol{y}\in A\cap B\).

Obviamente que quando \(m=1\) a oscilação iguala  \(\sup_{A\cap B}f-\inf_{A\cap B}f\).

Usaremos também o conceito de oscilação de uma função num ponto [não confundir com oscilação de uma função num conjunto singular que seria sempre \(0\) e com muito pouco interesse] que em particular nos permitirá quantificar a não continuidade de uma função num ponto.

Definição (Oscilação de uma função num ponto). Dada uma função \(f:A\subset\mathbb{R}^n\to \mathbb{R}^m\) e \(\boldsymbol{x}\in A\) define-se a oscilação de \(f\) num ponto \(\boldsymbol{x}\in A\), via \[\operatorname{osc}(f,\boldsymbol{x})\equiv\inf_{\epsilon>0}\{\operatorname{osc}_{B_\epsilon(\boldsymbol{x})\cap A}f\}.\]

É quase imediato que

Proposição. Uma função é contínua num ponto do seu domínio se e só se a sua oscilação nesse ponto for \(0\).

Introduzimos a seguir a noção de continuidade uniforme no espírito de ser uma forma de controlar globalmente a oscilação de uma função.

Definição (Continuidade uniforme). Dada uma função \(f:A\subset\mathbb{R}^n\to \mathbb{R}^m\) diz-se que \(f\) é uniformemente contínua em \(A\) se, qualquer que seja o \(\epsilon>0\) dado, existe \(\delta>0\) tal que a oscilação de \(f\) em todas as bolas de raio \(\delta\) centradas em pontos de \(A\) é menor que \(\epsilon\).

Exercício. Prove que a definição de continuidade uniforme é equivalente a dizer que,  qualquer que seja o \(\epsilon>0\) dado, existe \(\delta>0\) tal que para todo o \(\boldsymbol{x}\in A\) e todo o \(\boldsymbol{y}\in B_\delta(\boldsymbol{x})\cap A\) temos \(\|f(\boldsymbol{x})-f(\boldsymbol{y})\|<\epsilon\).

Exercício. Mostre que a função $\mathbb{R}\ni x\mapsto x^2$ não é uniformemente contínua.

Exercício. Mostre que a função $]0,1]\ni x\mapsto \frac{1}{x}$ não é uniformemente contínua.

Em relação à definição de continuidade ponto a ponto em \(A\) o ingrediente adicional na definição de continuidade uniforme é poder escolher-se \(\delta\) independentemente de \(\boldsymbol{x}\), isto é, uniformemente.

Teorema (Heine-Cantor). Uma função \(f:K\subset\mathbb{R}^n\to \mathbb{R}^m\) contínua e com \(K\) um limitado e fechado é necessariamente uniformemente contínua.

Ideia da demonstração. Se \(f\) não for uniformemente contínua existe um \(\epsilon\gt 0\) tal que para cada \(j\in\mathbb{N}\) podemos encontrar uma bola centrada num ponto de \(K\), \(B_{1/j}(\boldsymbol{x}_j)\), onde a oscilação de \(f\) é maior que \(\epsilon\). A sucessão formada pelos \(\boldsymbol{x}_j\) é uma sucessão num limitado e fechado logo possui uma subsucessão convergente para um limite \(\boldsymbol{x}^\ast\in K\). Dada uma qualquer bola centrada em \(\boldsymbol{x}^\ast\), \(B_r(x^\ast)\), existe um \(j\) tal que \(B_{1/j}(\boldsymbol{x}_j)\subset B_r(\boldsymbol{x}^\ast)\). Mas então \(\boldsymbol{x}^\ast\) não seria um ponto de continuidade de \(f\). Fim da ideia de demonstração.

Detalhes

As duas últimas afirmações na ideia de demonstração acima têm que ser verificadas.

Seja $r\gt 0$. Como $\boldsymbol{x}_j\to \boldsymbol{x}^\ast$ existe $j_0\in\mathbb{N}$ tal que para $j\gt j_0$ temos $\|\boldsymbol{x}_j - \boldsymbol{x}^\ast\|\lt r/2$. Além disso, como $1/j\to 0$, existe $k_0\gt j_0$ tal que para $k\gt k_0$ temos $1/k\lt r/2$. Consideremos um tal $k$ e $\boldsymbol{z}\in B_{1/k}(\boldsymbol{x}_k)$. Então $\|\boldsymbol{z}-\boldsymbol{x}^\ast\|\leq \|\boldsymbol{z}-\boldsymbol{x}_k\| + \|\boldsymbol{x}_k-\boldsymbol{x}^\ast\|\lt \frac{1}{k}+\frac{r}{2}\lt r$. Isto prova a afirmação do penúltimo parágrafo.

Quanto à última afirmação notamos que, qualquer que seja a bola centrada em $\boldsymbol{x}^\ast$, existem nessa bola pontos $\boldsymbol{x}$ e $\boldsymbol{y}$ tais que $\|f(\boldsymbol{x})-f(\boldsymbol{y})\|\gt \epsilon$. Mas então ou $\|f(\boldsymbol{x})-f(\boldsymbol{x}^\ast)\|\gt \epsilon/2$ ou $\|f(\boldsymbol{y})-f(\boldsymbol{x}^\ast)\|\gt \epsilon/2$ o que torna impossível verificar a definição de continuidade em $\boldsymbol{x}^\ast$.

Teorema de Heine-Cantor
A ideia da demonstração do teorema de Heine-Cantor.

Integrabilidade

Uma consequência imediata do teorema de Heine-Cantor é a integrabilidade de funções contínuas em intervalos limitados e fechados. Com efeito, se estivermos a considerar a integração de uma função num intervalo de volume \(V>0\), sendo  \(\epsilon>0\) dado, escolha-se \(\delta>0\) pelo teorema de Heine-Cantor de maneira à oscilação da função num qualquer intervalo limitado e fechado de diâmetro menor que \(\delta\) contido no intervalo de integração ser inferior a \(\epsilon/V\). Então a diferença entre as somas superiores e inferiores da função relativamente a uma partição que determine subintervalos de diâmetro menor que \(\delta\) é inferior a \(\epsilon\) o que prova a integrabilidade.

Proposição. Seja $f:I\subset\mathbb R^n\to\mathbb R$ uma função contínua definida num intervalo limitado e fechado $I$. Então $f$ é integrável em $I$.

Exemplo. Considere-se a função \([0,1]^3\mapsto \frac{e^{xy^2}}{1+z^2}\). Esta função é contínua logo integrável em \([0,1]^3\).

Propositadamente não demos ênfase particular à integrabilidade de funções contínuas. Ao contrário do que se passa em dimensão \(1\), em que a integrabilidade de funções contínuas em intervalos limitados e fechados, mais a aditividade relativamente aos intervalos de integração com um ponto em comum, são suficientes para lidar com uma classe suficientemente lata para as aplicações que tínhamos em vista, a integração em dimensão maior que \(1\) lida, mesmo em situações muito elementares, com funções descontínuas em conjuntos infinitos.

Exemplo. Seja \(T=\{(x,y)\in\mathbb{R}^2:x\geq 0, y\geq 0, x+y\leq 1\}\) e \(f:T\to \mathbb{R}\) definida por \(f(x,y)=xy\). A função \(f\) é contínua em \(T\) mas a definição de integral neste caso é feita à custa de \(\int_{[0,1]^2} f^\ast\) em que \(f^\ast:[0,1]^2\to \mathbb{R}\) é definida por \[f^\ast(x,y)=\begin{cases}f(x,y), & \text{ se } (x,y)\in T \\ 0, & \text{ se } (x,y)\not\in T.\end{cases}\] A função \(f^\ast\) é descontínua em \(E\equiv\left\{(x,x)\in\mathbb{R}^2: x\in {]0,1[}\right\}\), um conjunto infinito, mas que suspeitamos não ser relevante de um ponto de vista de volume bidimensional.

Vamos então provar que a função \(f^\ast\) é integrável em \([0,1]^2\). [Embora se trate de um simples exemplo ilustra bem o raciocínio que se acabará adoptando para estabelecer o critério de integrabilidade geral e chama a atenção para a dificuldade de ordem técnica que ocorre.] Seja então \(\epsilon>0\) e procuremos garantir a existência de uma partição \(P\in\mathcal{P}([0,1]^2)\) tal que \(S(f^\ast,P)-s(f^\ast,P)<\epsilon\).

Começamos por exibir um número finito de intervalos abertos cuja união contém \(E\) e tal que a soma dos seus volumes multiplicada pela \(\operatorname{osc}_{[0,1]^2}f^\ast\) seja inferior a \(\epsilon/2\). Dada a geometria simples do conjunto de pontos de descontinuidade tal conseguir-se-á considerando um natural \(j\) suficientemente grande e intervalos abertos \(I_{jk}=\left]\frac{k-1}{j},\frac{k-1}{j}\right[^2\) em que \(k=0,\dots,j\). Cada um destes intervalos tem volume \(4/j^2\) de maneira que a soma dos seus volumes é \((4j+4)/j^2\). Como \(\operatorname{osc}_{[0,1]^2}f^\ast=1\) bastará que \((4j+4)/j^2<\epsilon/2\) o que com certeza acontece pois aquela fracção tende para \(0\) quando \(j\to\infty\). Consideremos fixado um tal \(j\). Note-se que \(f^\ast\) é contínua em \(C\equiv[0,1]^2\setminus \cup_{k=0}^j I_{jk}\) e que este conjunto é limitado e fechado donde podemos aplicar aqui o teorema de Heine-Cantor para obter \(\delta > 0 \) tal que em intervalos \(I'\) de diâmetro menor que \(\delta\) contidos em \(C\) tenhamos \(\operatorname{osc}_{I'}f^\ast \operatorname{vol}([0,1]^2)=\operatorname{osc}_{I'}f^\ast<\epsilon/2\).

Agora é fácil garantir a existência da partição \(P\). Comecemos por incluir em \(P\) todos os vértices de intervalos \(I_{jk}\). Depois, por bissecções de cada subintervalo determinado por estes pontos, juntemos pontos à partição de maneira a garantir que obtemos uma partição em que todos os subintervalos limitados e fechados determinado por esta têm diâmetro menor que \(\delta\). Para estimar \(S(f,P)-s(f,P)\) note que cada subintervalo desta partição ou está contido no fecho de um \(I_{jk}\) ou possui a propriedade de cada nele \(f^\ast\) oscila menos que \(\epsilon/2\).

Criando uma partição para mostrar integrabilidade. O argumento divide a análise ao que se passa em subintervalos com soma de volumes pequeno e oscilação da função limitada (e que cobrem o conjunto de descontinuidades \(E\)) e por outro em subintervalos em que a oscilação da função é pequena e a soma de volumes limitada (\(C\)).

Fim do exemplo.

O exemplo anterior tem o mérito de ser suficientemente simples para entender-se o problema com que estamos a lidar no que diz respeito a integrabilidade, mostrando qual é a estratégia que se acabará por utilizar no resultado geral, mas sofre de algumas lacunas sérias:

  • É possível uma função ser integrável sem que seja possível cobrir o conjunto dos seus pontos de descontinuidade por uniões finitas de intervalos abertos com somas de volumes arbitrariamente pequenas.
  • Dada a observação anterior não é óbvio como construir uma partição com as propriedades desejadas a partir de famílias não finitas de intervalos.
  • A geometria do conjunto de pontos de descontinuidade era particularmente simples e o método de construir a partição parece demasiado algorítmico para se aplicar em geral.

A primeira das três observações anteriores pode ser verificada como legítima resolvendo o seguinte

Exercício. Considere a função \(r:[0,1]\to\mathbb{R}\) definida por \[r(x)=\begin{cases}0, &\text{ se } x\not\in\mathbb{Q} \text{ ou } x=0, \\ \frac{1}{q}, & \text{ se } x=\frac{p}{q} \text{ com } p,q \in \mathbb{N}, q\neq 0, \text{ e } p,q \text{ primos entre si.} \end{cases}\] Mostre que:

  1. \(r\) é contínua nos irracionais e em $0$ e não é contínua nos restantes pontos.
  2. Qualquer união finita de intervalos abertos contendo os racionais do intervalo \([0,1]\) contém todos os pontos do intervalo \([0,1]\) com a possível excepção de um número finito de irracionais. Em particular a soma dos comprimentos desses intervalos é maior ou igual a $1$.
  3. \(r\) é integrável em \([0,1]\).
  4. Dado $\epsilon\gt 0$ construa uma família de intervalos abertos, \(\{I_k\}_{k\in\mathbb{N}}\) tal que \(\cup_k I_k\supset \mathbb{Q}\cap[0,1]\) e \(\sum_k \operatorname{vol}(I_k)\lt\epsilon\).

Fim de exercício.

Para ultrapassar as três objecções citadas vamos usar uma caracterização dos limitados e fechados que nos vai permitir reduzir as famílias de intervalos que vão aparecer ao lidar com o caso geral a famílias finitas.

Teorema (Heine-Borel). Seja \(K\subset\mathbb{R}^n\). \(K\) é limitado e fechado se e só se dada uma qualquer família de abertos \(\{U_\alpha\}_{\alpha\in S}\)  tal que \[\bigcup_{\alpha\in S}U_\alpha\supset K\]  existe uma subfamília finita de tais abertos cuja união contém \(K\).

Demonstração

Suponha-se que a propriedade no enunciado do teorema se verifica. Vamos mostrar que uma qualquer sucessão de termos em \(K\) possui subsucessões convergentes o que sabemos ser equivalente a \(K\) ser limitado e fechado. Suponha-se que o conjunto de termos da sucessão não tinha um ponto de acumulação (caso contrário esse ponto de acumulação seria um sublimite). Então para cada ponto de \(K\) existiria uma bola aberta contendo esse ponto e que só conteria \(0\) ou \(1\) termos da sucessão. A união de tais bolas contém \(K\) logo por hipótese existe um número finito dessas bolas cuja união contém \(K\). Mas então o conjunto dos termos da sucessão é finito o que implica que há um termo que se repete infinitas vezes e é um sublimite.

Reciprocamente, suponha-se que \(K\) é limitado e fechado que sabemos ser equivalente a qualquer sucessão de termos em \(K\) ter subsucessões convergentes. Considere-se um cubo \(n\)-dimensional  limitado e fechado \(C\) contendo \(K\). Vamos considerar partições de \(C\) obtidas por bissecções sucessivas das suas arestas obtendo no passo de ordem \(k\) uma família de subintervalos limitados e fechados da forma \(J(k)_{i_1\dots i_n}\) em que \(i_1,\dots,i_n=1,\dots, 2^k\) cada um deles um cubo limitado e fechado com diâmetro verificando \(\operatorname{diam}(J(k)_{i_1\dots i_n})=\operatorname{diam}(C)/2^k\). Considere-se uma qualquer família de abertos \(U_\alpha\) cuja união contém \(K\). Para cada \(k\in\mathbb{N}\) consideramos uma subfamília finita de \(U_\alpha\)s que se obtém escolhendo, para cada \(J(k)_{i_1\dots i_n}\) um \(U_\alpha\) que o contém, se existir. Se a união de tais \(U_\alpha\)s contiver \(K\) teríamos obtido uma subfamília finita de \(U_\alpha\)s que contém \(K\) (note que \(k\) é fixo e para \(k\) fixo há um número finito de \(J(k)_{i_1\dots i_n}\)s e para cada um deles escolhemos \(0\) ou \(1\) \(U_\alpha\)). Se tal nunca acontecer qualquer que seja o \(k\) podemos sempre escolher para cada \(k\) um ponto \(\boldsymbol{x}_k\in K\) que não está em nenhum dos \(U_\alpha\)s desse passo. Os \(\boldsymbol{x}_k\in K\) formam uma sucessão em \(K\) que possuirá uma subsucessão convergente. Designemos o limite dessa subsucessão por \(\boldsymbol{x}^\ast\in K\). Mas então \(\boldsymbol{x}^\ast\in U_\alpha\) para algum \(\alpha\). Mas isto é impossível porque para \(k\) suficientemente grande terá que existir um \(J(k)_{i_1\dots i_n}\subset U_\alpha\) o que, dada a forma como construímos a sucessão, teria excluído  \(\boldsymbol{x}^\ast\) do conjunto dos seus possíveis sublimites. Fim da demonstração.

Neste momento temos todos os requisitos para lidar com o critério de integrabilidade baseado no conceito de medida nula. A sua aplicação vai consistir em decidir se o conjunto dos pontos de descontinuidade da função integranda (suposta já estendida trivialmente a um intervalo limitado) tem ou não medida (\(n\)-dimensional) nula e usar critérios que nos permitam decidir com facilidade se um conjunto tem ou não medida nula. Tal envolverá assumir pré-requisitos mínimos sobre séries e cardinalidade de conjuntos.

Definição (Medida (\(n\)-dimensional) nula). Um conjunto \(E\subset\mathbb{R}^n\) diz-se ter medida (\(n\)-dimensional) nula se para cada \(\epsilon>0\) existir uma família finita ou numerável de intervalos de \(\mathbb{R}^n\), \(\{I_k\}\) tal que \(\sum_k \operatorname{vol}(I_k)<\epsilon\) e \(\cup_k I_k\supset E\).

Indicaremos explicitamente a dimensão se esta não for explícita do contexto em situações ambíguas. Por exemplo um segmento de recta tem medida nula em \(\mathbb{R}^n\) com \(n\geq 2\) mas não tem medida nula (se tiver mais do que um ponto) em dimensão \(1\).

Convém desde já listar algumas propriedades de verificação imediata de conjuntos com medida nula.

Proposição. Um subconjunto de um conjunto com medida nula tem medida nula.

Proposição. Um intervalo limitado tem medida nula se e só se tiver volume \(0\).

Para continuar precisaremos de algumas noções de cardinalidade de conjuntos.

Relembrando cardinalidade

Seja $m\in \mathbb N$. Um conjunto que se pode colocar em correspondếncia bijectiva com o conjunto $\{n\in\mathbb N: 1\leq n\leq m\}$ diz-se finito com cardinalidade $m$. Os conjuntos não finitos dizem-se infinitos.

Um conjunto que se pode colocar em correspondência bijectiva com $\mathbb N$ diz-se numerável.

Um conjunto que é finito ou numerável diz-se contável.

Exemplo. Todos os subconjuntos de $\mathbb Q$ são contáveis.

Sugerindo como contar os racionais positivos.

Exemplo. $[0,1]$ ou qualquer intervalo de $\mathbb R$ com mais que um ponto é infinito não numerável.

Se $[0,1]$ fosse numerável poderíamos indexar os reais do intervalo $[0,1]$ que portanto se poderia escrever como um conjunto $\{x_j: j\in\mathbb{N}\}$. Se considerarmos que cada $x_j$ é representado pela sua dízima em base $10$ temos $x_j=0,y_{1j}y_{2j}y_{3j}y_{4j}y_{5j}\dots$ em que cada $y_{kj}$ é um inteiro entre $0$ e $9$. Mas se tomarmos $z=0,z_1 z_2z_3 z_4 z_5\dots$ em que \[z_j=\begin{cases}2, & \text{ se } y_{jj}\neq 2, \\ 5, & \text{ se } y_{jj}= 2\end{cases}\] verificamos que $z$ é um número em $[0,1]$ que não é nenhum dos $x_j$.

Se adaptar a maneira como contámos os racionais positivos, acabará conseguindo demonstrar as duas proposições seguintes.

Proposição. A união numerável de conjuntos contáveis é contável.

Proposição. O produto cartesiano contável de conjuntos contáveis é contável.

Proposição. A união contável, i.e. finita ou numerável, de conjuntos com medida nula tem medida nula.

Ideia da demonstração. Seja \(\epsilon>0\). Cubra-se o primeiro conjunto com uma família de intervalos com soma de volumes menor que \(\epsilon/2\), o segundo conjunto com um família de intervalos com soma de volumes menor que \(\epsilon/2^2\),..., o \(k\)-ésimo conjunto com um família de intervalos com soma de volumes menor que \(\epsilon/2^k\),... Todos estes intervalos formam uma família contável, a sua união contém a união de todos os conjuntos e tem soma de volumes menor que \(\epsilon\). Fim da ideia de demonstração.

Proposição. Seja \(K\subset\mathbb{R}^n\) um limitado e fechado e \(f:K\to \subset\mathbb{R}^m\) uma função contínua. Então o gráfico de \(f\), \(\mathcal{G}(f)\equiv\{(\boldsymbol{x},f(\boldsymbol{x})): \boldsymbol{x}\in K\}\), tem medida \(n+m\)-dimensional nula.

Ideia da demonstração. Seja \(\epsilon>0\). Considere um intervalo limitado e fechado contendo \(K\) e partições desse intervalo obtidas, por exemplo, por bissecções sucessivas. Use o teorema de Heine-Cantor para determinar uma partição tal que em cada subintervalo determinado canonicamente pela partição a oscilação da função seja inferior a \(\epsilon\). Cubra o gráfico por intervalos da forma \[J\times [y_1-\epsilon/(2\sqrt{m}), y_1+\epsilon/(2\sqrt{m})]\times \dots\times [y_m-\epsilon/(2\sqrt{m}), y_m+\epsilon/(2\sqrt{m})]\] em que \(J\) é um subintervalo limitado e fechado definido canonicamente pela partição e \(\boldsymbol{y}=(y_1,\dots,y_m)\) é um valor de \(f\) em \(J\). Fim da ideia da demonstração.

Exercício. Considere \(E=\{(x,y)\in\mathbb{R}^2: x^2+y^2=\frac{1}{k} \text{para algum } k\in\mathbb{N}\}.\) Use as proposições anteriores para mostrar que \(E\) é um conjunto com medida (bidimensional) nula.

Teorema (Condição necessária e suficiente de integrabilidade). Seja \(I\subset\mathbb{R}^n\) um intervalo e fechado e \(f:I\to\mathbb{R}\) uma função limitada. Então \(f\) é integrável em \(I\) se e só se o seu conjunto de pontos de descontinuidade tiver medida nula.

Demonstração. Designamos por \(E\) o conjunto dos pontos de descontinuidade de \(f\).

Suponhamos que \(E\) tem medida nula. Seja \(\epsilon>0\) dado. Consideremos uma família finita ou numerável de intervalos abertos limitados \(I_k\) tais que a sua união contém \(E\) e \(\sum_k \operatorname{vol}(I_k)<\epsilon\). Seja \(r=\operatorname{dist}(I\setminus \cup_k I_k,E)\) [prove que \(r>0\) usando o teorema de Weierstrass!]. O conjunto \(\{\boldsymbol{x}\in I: \operatorname{dist}(\boldsymbol{x}, E)\geq r/2\}\) é limitado e fechado e \(f\) é contínua neste conjunto e, pelo teorema de Heine-Cantor, uniformemente contínua. Escolha-se \(\delta\), com \(0\lt \delta\lt r/2\) , tal que em intervalos abertos \(J\) de diâmetro \(\delta\) com centro em pontos de \(I\setminus \cup_k I_k\) a oscilação de \(f\) seja inferior a \(\epsilon\). A família formada por todos os intervalos \(J\) e todos os \(I_k\) tem uma união que contém \(I\) e, pelo teorema de Heine-Borel, tem uma subfamília finita cuja união ainda contém \(I\). Se usarmos todos os vértices de todos estes intervalos para definir uma partição \(P\in\mathcal{P}(I)\) os subintervalos limitados e fechados definidos canonicamente por esta partição ou têm um interior contido num \(I_k\) ou o interior contido num \(J\). A contribuição para a diferença \(S(f,P)-s(f,P)\) dos subintervalos no primeiro caso pode ser majorada por \(\sum_k 2\operatorname{vol}(I_k)\sup_I(|f|)<2\epsilon \sup_I(|f|) \) e no no segundo caso por \(\operatorname{vol}(I)\epsilon\) pelo que \[S(f,P)-s(f,P)< \left(2 \sup_I(|f|) + \operatorname{vol}(I)\right)\epsilon\] o que prova a integrabilidade.

Para provar o recíproco começamos por observar que \(E\) pode ser representado por uma união numerável de conjuntos \[E=\bigcup_{k\in\mathbb{N}} E_k\] com \[E_k\equiv\{\boldsymbol{x}\in I:\operatorname{osc}(f,\boldsymbol{x})>1/k\}\] em que \(\operatorname{osc}_f(\boldsymbol{x})\) é a oscilação de \(f\) relativa ao ponto \(\boldsymbol{x}\). Assim bastará provar que cada \(E_k\) tem medida nula. Observamos que se \(P\in\mathcal{P}(I)\) e no interior de um dado subintervalo \(J\) canonicamente definido pela partição existir um ponto de \(E_k\) então \(\operatorname{osc}_f(J)\geq 1/k\). A contribuição de tais subintervalos para \(S(f,P)-s(f,P)\) será maior ou igual a \(1/k\) vezes a soma dos seus volumes. Isto leva-nos a concluir que se \(P\) tiver sido escolhida de maneira a \(S(f,P)-s(f,P)<\epsilon/k\) então a soma dos volumes dos subintervalos definidos por \(P\) cujos interiores contêm pontos de \(E_k\) é menor que \(\epsilon\). Outros pontos de \(E_k\) que não estejam no interior de subintervalos definidos por \(P\) estão contidos na união das fronteiras dos subintervalos definidos canonicamente por \(P\) que facilmente se verifica ser um conjunto com medida nula. Isto prova o pretendido. Fim de demonstração.

Exercício. Considere \(f:B_1(0,0)\to\mathbb{R} \) definida por \[f(x,y)=\begin{cases}\displaystyle\lim_{k\to\infty}\sen^{2k}\left(\frac{1}{x^2+y^2}\right), & \text{ se } (x,y)\neq (0,0), \\ 0, & \text{ se } (x,y)= (0,0). \end{cases}\] Determine os pontos de descontinuidade de \(f\) e do seu prolongamento trivial ao intervalo \([-1,1]^2\). Decida se \(f\) é ou não integrável em \(B_1(0,0)\).

Exercício (Integrabilidade das funções monótonas). Seja $f:[a,b]\to\mathbb{R}$, com $a\lt b$, uma função monótona. Prove que:

  1. Para cada $n\in\mathbb{N_1}$ o conjunto dos pontos de $[a,b]$ onde $f$ tem uma oscilação superior a $1/n$ é finito.
  2. O conjunto de pontos de descontinuidade de $f$ tem medida nula.
  3. $f$ é integrável em $[a,b]$.

Continuidade uniforme e continuidade de integrais paramétricos

A propriedade de continuidade uniforme e a possibilidade de a verificar usando o teorema de Heine-Cantor dão-nos um método prático de verificar a continuidade de algumas funções definidas pelos chamados integrais paramétricos.

Proposição (continuidade de integrais paramétricos). Sejam $I\subset\mathbb{R}^n$ um intervalo limitado, $B\subset\mathbb{R}^m$ e $f:I\times B\to \mathbb{R}$ uma função integrável em $I$ para todo o $\boldsymbol{t}\in B$. Se $f$ for uniformement contínua em $I\times B$ então a função \[B\ni \boldsymbol{t} \mapsto \int_I f(\boldsymbol{x},\boldsymbol{t})\, d\boldsymbol{x} \] é contínua em $B$.

Demonstração. Seja $\epsilon \gt 0$ dado. Escolha-se $\delta \gt 0$ tal que \[ (\boldsymbol{x},\boldsymbol{t}), (\boldsymbol{x}_0,\boldsymbol{t}_0)\in I\times B , \;\|(\boldsymbol{x},\boldsymbol{t})-(\boldsymbol{x}_0,\boldsymbol{t}_0)\| \lt \delta  \Rightarrow |f(\boldsymbol{x},\boldsymbol{t})-f(\boldsymbol{x},\boldsymbol{t})|\lt \epsilon.\] Então sendo $\boldsymbol{x},\boldsymbol{x}_0\in B$ com $\|\boldsymbol{x}-\boldsymbol{x}_0\|\lt \delta$ temos \[\left| \int_I f(\boldsymbol{x},\boldsymbol{t})\, d\boldsymbol{x} - \int_I f(\boldsymbol{x}_0,\boldsymbol{t})\, d\boldsymbol{x}\right|\leq \operatorname{vol}(I)\epsilon,\] o que prova a continuidade (uniforme) deste integral paramétrico. Fim de demonstração.

Exemplo. Considere-se a função definida por \[[0,1]\ni x \mapsto \int_0^1 e^{t^2 x}\, dt.\] [Note que a função integranda não é elementarmente primitivável e portanto não há hipótese de estabelecer a continuidade calculando o integral.]

Dado a função $[0,1]^2\mapsto e^{t^2 x}$ ser contínua em $[0,1]^2$, e portanto uniformemente continua pelo teorema de Heine-Cantor, podemos concluir que o integral define uma função contínua (que até é uniformemente contínua). Fim de exemplo.

Exercício. Suponha que usa o mesmo integral do exemplo anterior para definir uma função para $x\in\mathbb{R}$. Mostre que a função é contínua em $\mathbb{R}$. Sugestão: considere a restrição da função a intervalos $[-k,k]$ com $k\in\mathbb{N}$.

Exercício. Justifique que a função definida por \[\mathbb{R}\ni x \mapsto \int_0^{x^2}e^{t^2 x+t}\, dt\] é contínua em $\mathbb{R}$.

Sugestão

Comece por estabelecer que a função definida por \[\psi(x,y)=\int_0^ye^{t^2 x+t}\, dt\] é contínua em $\mathbb{R}^2$. Para isso comece por considerar que $(x,y)$ está num intervalo limitado e fechado $[a,b]\times [c,d]$. Aí poderá estimar a função integranda pelo teorema de Weierstrass, o que lhe será útil ao tentar estimar $|\psi(x,y)-\psi(x_0,y_0)|$.

Solução

Considere-se um intervalo limitado, fechado e não vazio $K=[a, b]\times [c,d]$ e seja $g(t,x)=e^{t^2 x+t}$. Pelo teorema de Weiestrass a função $|g|$ tem um máximo em $K$ que designaremos por $M$. Além disso a função $g$, pelo teorema de Heine-Cantor, é uniformemente contínua em $K$.

Seja $\epsilon \gt 0$ e escolha-se $\delta\gt 0$ tal que $\delta M\lt \epsilon/2$ e se $(t_0,x_0), (t,x)\in K$ são tais que $\|(t,x)-(t_0,x_0)\|\lt \delta$ então $|g(t,x)-g(t_0,x_0)|\lt \epsilon/2(d-c)$ (usando continuidade uniforme). Então \begin{align*}|\psi(x,y)-\psi(x_0,y_0)|&=|\psi(x,y)-\psi(x,y_0)+\psi(x,y_0)-\psi(x_0,y_0)|\\ & \leq \left|\int_{y_0}^y g(t,x)\, dt\right|+ \left|\int_0^{y_0}g(t,x)-g(t,x_0)\, dt\right| \\ & \leq \delta M + |y-y_0| \frac{\epsilon}{2(d-c)}\lt \epsilon \end{align*} o que prova que $\psi$ é uma função contínua em $K$. Mas como o mesmo argumento é aplicável num qualquer outro intervalo limitado e fechado e não vazio, obtemos continuidade de $\psi$ em $\mathbb{R}^2$.

Finalmente o teorema de continuidade da função composta garante que a função original pois trata-se da composição da aplicação $x\mapsto (x, x^2)$ com $\psi$.


Última edição desta versão: João Palhoto Matos, 23/04/2021 17:49:14.