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Cálculo Diferencial e Integral II

Potenciais vectoriais

Uma questão de importância comparável à de saber se um campo vectorial é gradiente de um potencial (e consequentemente conservativo) é saber que campos são rotacionais. Vamos limitarmo-nos a indicar uma condição necessária, uma condição suficiente com hipóteses bastante restritivas sobre o domínio do campo e convencer o leitor que condições suficientes mais sofisticadas exigem mais trabalho.

Definição (Potencial vectorial). Sejam $U\subset\mathbb{R}^3$ um aberto, $F:U\to \mathbb{R}^3$. Diz-se que um campo $G:U\to \mathbb{R}^3$ é um potencial vectorial de $F$ em $U$ se $\rot G =F$ em $U$.

Proposição (Condição necessária para um campo ser um rotacional). Seja $U\subset\mathbb{R}^3$ um aberto, $F:U\to \mathbb{R}^3$ tal que $F=\rot H$ para um certo campo $H:U\to \mathbb{R}^3$, $H\in C^2(U)$. Então $\div F=0$.

Demonstração. Seja $H=(P,Q,R)$. Então \[\rot H=\left(\frac{\partial R}{\partial y}-\frac{\partial Q}{\partial z},\frac{\partial P}{\partial z}-\frac{\partial R}{\partial x},\frac{\partial Q}{\partial x}-\frac{\partial P}{\partial y}\right)\] donde  \[\div F=\frac{\partial}{\partial x}\left(\frac{\partial R}{\partial y}-\frac{\partial Q}{\partial z}\right)+ \frac{\partial}{\partial y}\left(\frac{\partial P}{\partial z}-\frac{\partial R}{\partial x}\right) + \frac{\partial}{\partial z}\left(\frac{\partial Q}{\partial x}-\frac{\partial P}{\partial y}\right)=0\] usando o teorema sobre igualdade de derivadas cruzadas. Fim da demonstração.

Teorema (Existência de potenciais vectoriais para campos de divergência nula em intervelos abertos). Sejam $I\subset\mathbb{R}^3$ um intervalo aberto, $F:I\to\mathbb{R}^3$ um campo de classe $C^1(I)$ tal que $\div F=0$ em $I$. Então existe um potencial vectorial $H$ de $F$ em $I$, isto é, $\rot H=F$.

Demonstração. Começamos por notar que se existe potencial vectorial $H$ cujo rotacional é $F$ então também $\rot (H +\nabla \phi)=F$ para todo o campo escalar $\phi\in C^2(I)$. Vamos tirar partido desta não unicidade de solução para simplificar a determinação de um potencial vectorial. Com efeito se $H=(P,Q,R)$ for uma solução e $F=(L,M,N)$ devemos ter \[\begin{cases}L=\frac{\partial R}{\partial y}-\frac{\partial Q}{\partial z} \\ M=\frac{\partial P}{\partial z}-\frac{\partial R}{\partial x} \\ N=\frac{\partial Q}{\partial x}-\frac{\partial P}{\partial y} \end{cases}\] em que sabemos que $\frac{\partial L}{\partial x}+\frac{\partial M}{\partial y} +\frac{\partial N}{\partial z} =0$. Vamos tentar determinar uma solução verificando $P=0$ algo que é razoável pois esperamos determinar $H$ a menos da adição de um gradiente. Então as coordenadas $Q$ e $R$ de $H$ devem verificar \[\begin{cases}L=\frac{\partial R}{\partial y}-\frac{\partial Q}{\partial z} \\ M=-\frac{\partial R}{\partial x} \\ N=\frac{\partial Q}{\partial x} \end{cases}\] algo que permite obter $R$ e $Q$ por primitivação via \[\begin{cases}R(x,y,z)=-\int_{x_0}^x M(t,y,z)\, dt + h_1(y,z) \\ Q(x,y,z)=\int_{x_0}^x N(t,y,z)\, dt + h_2(y,z) \end{cases}\] em que supomos $(x_0,y_0,z_0)\in I$ e $h_1$ e $h_2$ são duas funções a determinar.

Para concluir precisamos de garantir que a terceira equação é satisfeita. Vamos fazê-lo escolhendo $h_1=0$ e determinando um $h_2$ conveniente. Devemos ter, usando a regra de Leibniz,  \[L=\frac{\partial R}{\partial y}-\frac{\partial Q}{\partial z} = -\int_{x_0}^x \frac{\partial M}{\partial y}(t,y,z)\, dx - \int_{x_0}^x \frac{\partial N}{\partial z}(t,y,z)\, dx -\frac{\partial h_2}{\partial z}\] Da condição de divergência nula de $F$, podemos alterar a última expressão de maneira a obter \[L=\int_{x_0}^x \frac{\partial L}{\partial x}(t,y,z)\, dt - \frac{\partial h_2}{\partial z} \] Esta equação, usando a regra de Barrow, é equivalente a \[\frac{\partial h_2}{\partial z} = - L(x_0,y,z)\] que podemos satisfazer integrando, obtendo \[h_2(y,z)=-\int_{z_0}^z L(x_0,y,s)\, ds.\] Fim de demonstração.

Faz-se notar que a demonstração fornece um algoritmo para a determinação de um potencial vectorial.

Uma questão que se pode colocar é se podemos estabelecer uma condição análogo à proposição que garante que campos fechados em simplesmente conexos são conservativos, isto é, se, por exemplo, um campo com divergência nula num aberto simplesmente conexo possui necessariamente um potencial vectorial. O exemplo seguinte fornece uma resposta pela negativa.

Exemplo. Seja $F:\mathbb{R}^3\setminus\{\boldsymbol{0}\}\to \mathbb{R}^3$ definido por \[F(x,y,z)=\frac{1}{(x^2+y^2+z^2)^{3/2}}(x,y,z).\] Então $\div F=0$ mas por cálculo directo obtemos, com $\nu$ a normal unitária exterior a $B_1(\boldsymbol{0})$,  \[\iint_{\partial B_1(\boldsymbol{0})}F\cdot \nu \, dS = 4\pi,\] enquanto que se $F$ fosse um rotacional este integral deveria ser $0$. Note que $\mathbb{R}^3\setminus\{\boldsymbol{0}\}$ é simplesmente conexo.

Exercício. Efectue os cálculos mencionados no exemplo anterior, ou veja o exemplo sobre a noção de ângulo sólido, e use o teorema de Stokes para justificar que se $F$ fosse um rotacional, o fluxo de $F$ seria $0$ (Sugestão: o fluxo de $F$ através de $\partial B_1(\boldsymbol{0})$ iguala o limite quando $\epsilon\to 0$ do fluxo através da parte de $\partial B_1(\boldsymbol{0})$ em que $z\lt 1-\epsilon$; pelo teorema de Stokes estes fluxos igualam o integral de linha de $H$ sobre uma circunferência em $\partial B_1(\boldsymbol{0})$ verificando $z=1-\epsilon$; estes integrais de linha tendem para $0$ quando $\epsilon\to 0$.).

Animação
Gráfico produzido com Sage via Jmol. A sugestão corresponde a aplicar o teorema de Stokes na superfície azul fazendo a calote roxa encolher até ao pólo.

Última edição desta versão: João Palhoto Matos, 19/03/2021 13:43:31.